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Psicologia da PUC-Campinas lança livro com estudantes de escola estadual

Foi lançado, no dia 23 de maio, na Escola Estadual Prof. Carlos Alberto Galhiego, o livro “A Contação dos Nossos Olhos”, com nove contos escritos por 19 alunos do 7º ano da escola. Eles foram elaborados pelos adolescentes e inspirados nos animes (animações japonesas) que assistiram em sala de aula, acompanhados de uma psicóloga e uma professora. O trabalho estará disponível de forma on-line, em uma página que será disponibilizada após o lançamento.

O livro é resultado de um projeto desenvolvido pela mestranda em Psicologia Rebecca Moura de Almeida Ferreira Carvalho e pela professora e pesquisadora Vera Lúcia Trevisan de Souza, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas, com a participação de Dorcas Rosicler Nunes, professora efetiva em Língua Portuguesa da escola.

Os animes apresentados nos encontros, sobre temas diversos, sensibilizaram e estimularam os adolescentes a mergulharem no processo imaginativo, deixando as emoções fluírem na elaboração de temas como morte, luto, violência, racismo, relações familiares, depressão etc.

O trabalho fará parte da dissertação de mestrado de Rebecca, que busca analisar a potência dos animes e mangás na promoção do desenvolvimento. Para isso, foram feitas várias intervenções na escola em diversas turmas. Uma delas foi essa com o 7º ano, que gerou o livro de contos.

As coordenadoras falaram sobre a experiência com os estudantes e a obra produzida.

Em uma época em que a violência nas escolas assusta a sociedade em geral, em especial estudantes, alunos e pais, como foi trabalhar sobre o tema do bullying e discriminação no meio estudantil?

Rebecca – Acho importante trabalhar essas temáticas, entendendo a perspectiva dos alunos. Meu trabalho na escola busca, primeiramente, ouvir essas crianças e adolescentes e ajudá-los no seu processo de desenvolvimento. É necessário compreender suas próprias visões sobre violência, bullying e discriminação e, a partir daí, debater de forma crítica e reflexiva.

Rosicler – Havia uma grande e urgente necessidade de trabalhar esses temas no meio estudantil. No início foi mais difícil, porque eles mais gritavam do que falavam e aos poucos foram percebendo que poderiam ser ouvidos mesmo falando com calma e de maneira silenciosa e educada.

Vera – A escola tem papel fundamental na educação das novas gerações e seu compromisso social se estende para além do ensino de conteúdos escolarizados, devendo atender às demandas da convivência entre os jovens, que se manifestam em forma de conflitos variados. Por ser um ambiente social, em que iguais interagem cotidianamente, a escola se constitui lugar privilegiado para o enfrentamento de questões que estão presentes na sociedade. Então, esses temas devem fazer parte do plano de ação de educadores e especialistas que atuam na escola.

Entretanto, não concordo que se atribua o movimento que tem acontecido envolvendo crianças ou jovens na escola à “violência na escola”. As situações de violência ocorridas, ou tantas outras que não tiveram tanto destaque, não são produzidas pela escola, elas são produzidas na/pela sociedade, que é extremamente violenta, e acabam por se reproduzirem na escola, por vezes um espaço vulnerável, por ser aberta ao público. E igual modo, não é possível atribuir os episódios de violência a uma causa somente, como o bullyng, por exemplo. A manifestação da violência é muito mais complexa, tem fatores multideterminantes e precisa ser tratada com cuidado e profundidade.

Como surgiu a ideia de trabalhar com animes e mangás junto aos estudantes?

Vera – Meu grupo de pesquisa trabalha com a arte como meio de intervenção nos contextos educativos. Estuda desenvolvimento e as formas de promovê-lo. Em geral, cada pesquisa-intervenção que se desenvolve elege uma materialidade artística como meio de aproximar os participantes das temáticas discutidas. Acreditamos que as expressões de natureza artística têm potencial para tocar os sujeitos e favorecer a expressão de suas emoções e sua elaboração. No caso dos adolescentes, os animes e mangás despertam seu interesse e envolvimento, por versarem sobre temas que lhes são sensíveis.

Rebecca – Sempre gostei de animes e mangás. No meu percurso acadêmico observei como essas mídias ajudaram (e ajudam) crianças e adolescentes a se expressar e a refletir sobre temáticas importantes, tais como: morte, luto, violência ou relações familiares. Hoje minhas pesquisas estão centradas em observar e utilizar essas mídias como ferramentas, dentro da psicologia, como uma forma de promover o desenvolvimento.

Muitos adultos criticam as crianças e adolescentes dos tempos atuais, dizendo que são preguiçosos, mimados e apegados demais ao celular e redes sociais. Há mesmo uma diferença tão grande nas gerações atuais que esteja refletindo no comportamento nas escolas, nas famílias e na sociedade?

Rosicler – Não digo que são preguiçosos. Eles estão desmotivados, sem objetivos, sem foco, e por vezes como zumbis nos celulares. O celular funciona como refúgio, um lugar em que eles podem ser eles mesmos sem enfrentar a realidade, que pode ser muito dura. Eu sou da época em que a máquina de escrever era tecnologia. A escola de antigamente possuía regras mais severas, podando e coibindo comportamentos. Não se podia fazer nada de diferente. Hoje, pode-se tudo e os adolescentes ficam, em sua maioria, inertes. São extremos perigosos. Deve-se haver limites, mas sem podar a criatividade.

Rebecca – Sempre haverá diferenças geracionais, mas não acredito que as crianças e adolescentes dos tempos atuais são preguiçosos, mimados ou apegados demais ao celular. Ao contrário, eu observo o potencial imaginativo e criativo que eles têm e acredito que é necessário incentivar esse potencial tanto nas escolas quanto em casa.

Vera – Acho que a representação de adolescentes como alheios ao mundo, desinteressados ou incapazes de pensar criticamente é fruto de uma concepção que carece ser ultrapassada. Esses contos mostram quão inadequadas são essas compreensões. É preciso ouvir os adolescentes, conversar com eles, dar-lhes voz. E é isso que nossos projetos nas escolas se propõem: dar voz aos adolescentes.

A criatividade mostrada pelos estudantes que participaram do projeto surpreendeu vocês que organizaram? Ou já acreditavam que bastava apenas o estímulo de forma correta para que eles mostrassem seus talentos?

Rebecca – Não me surpreendeu, pois já acreditava no potencial que eles tinham antes mesmo de iniciar o projeto. Penso que o papel do psicólogo, dentro da escola, é de favorecer a criação de espaços dialógicos como esse, que possibilitam expressar as emoções e ampliar a reflexão. Nas intervenções desenvolvidas, neste trabalho, tive o cuidado de escolher animes com temáticas atuais, que se aproximassem do universo dos adolescentes, e que pudessem favorecer seus processos de imaginar, pensar, fazer e refazer. Não imaginava que no final eles escreveriam essas histórias, mas tinha esperança que o trabalho com a turma ajudasse a ampliar a consciência, enquanto possibilidade de compreensão mais aprofundada de si e do mundo e com isso os ajudasse a crescer como sujeitos. Os belíssimos contos produzidos por eles foram apenas um resultado desse crescimento pessoal.

Rosicler – Como a professora desses alunos, posso dizer que fiquei surpresa com a criatividade deles, ainda mais por ser o primeiro ano pós-pandemia, em que todos estavam sofrendo pela perda da aprendizagem e foram marcados emocionalmente e fisicamente por esse período. O estímulo correto feito em parceria com a psicóloga fez com que o projeto desse certo.

Vera – Quando estudamos o desenvolvimento dos adolescentes, sobretudo a partir de uma perspectiva crítica da psicologia, compreendemos que na adolescência a imaginação e os processos criativos assumem grande relevância no funcionamento de seu psiquismo. Ou seja, eles dispõem desses recursos para lançar mão em suas ações, só precisando que se criem espaços para sua manifestação, oferecendo-lhes desafios e materiais para que possam criar. Os adolescentes estão no auge de seu processo criativo e oferecer-lhes possibilidades para que avancem rumo à melhoria de suas condições de vida é fundamental.

O projeto continua na escola ou em outras unidades?

Vera – Nós entramos na escola por meio de parceria com a gestão e com os professores. Estamos nessa escola em específico desde 2016. É uma proposta de pesquisa-intervenção, ou seja, a ideia é que desenvolver pesquisa envolve, também, buscar oferecer possibilidades de transformação do cenário em que ela se desenvolve. Assim, os psicólogos entram no campo para desenvolver um projeto de ação e, por meio de sua aplicação, colher as informações para sua pesquisa, que constitui apenas uma parte da ação interventiva. As intervenções nascem das demandas da escola, colocadas pelos educadores e observadas por nós. Mantemos psicólogos na escola nos três períodos de seu funcionamento – manhã, tarde e noite. Como se trata de uma escola que tem 1400 alunos, as demandas são muitas e não conseguimos atuar em outras escolas, mas estamos com projeto para atender a mais uma, pelo menos.

Há intenção de torná-lo um projeto permanente? Algum convênio com a rede pública de ensino?

Vera – O projeto já é permanente, ainda que não contemos com qualquer ajuda ou financiamento. Apenas utilizamos nossas bolsas de mestrado, doutorado e produtividade em pesquisa (no meu caso), para financiar nossas idas ao campo ou os materiais que necessitamos. Não temos convênio nem financiamento específico para o projeto no momento, o que dificulta algumas ações que poderiam ser realizadas.

Na opinião de vocês, quais são os maiores problemas enfrentados pelas crianças e adolescentes nas escolas nos dias de hoje?

Rosicler – A defasagem escolar, pois a pandemia trará marcas desse atraso por muitos anos ainda. Outro grande problema é que nossas crianças e adolescentes não estão sabendo lidar com os conflitos naturais da vida, como perdas, raiva, desentendimentos, separação dos pais, bullying e outros. Só a escola não está sendo suficiente para dar esse respaldo aos alunos. As famílias estão, em grande parte, desestruturadas. Muitos núcleos familiares sendo feitos e desfeitos, e a criança fica no meio, ora com o pai, ora com a mãe, ora com os avós, ou algum parente. Esses adolescentes se sentem sozinhos e descontam esses sentimentos negativos na escola, manifestando em seus comportamentos hostis, agressivos ou de apatia. Uma parceria com psicólogos não é a resposta para todas as indagações a respeito, no entanto, contribui para amenizar esses ajustes diários, apoiando os professores nessa longa missão da vida, que é ensinar.

Rebecca – As crianças e adolescentes (assim como os adultos) são atravessados por diversos sofrimentos psíquicos. Ao passar boa parte dos seus dias na escola, acredito que um maior acolhimento e preparo para lidar com essas questões é necessário dentro desse contexto. Observamos diversos alunos praticando autolesão e com ideação suicida e mesmo assim não há psicólogos nas escolas. São necessárias mais ações promotoras da saúde mental e de enfretamento ao sofrimento psíquico e para isso acredito que a atuação do psicólogo escolar (assim como de assistentes sociais e terapeutas ocupacionais) deveria acontecer de forma mais ativa e presencial em todas as escolas. O trabalho que consegui desenvolver aqui, por exemplo, só foi possível por causa da parceria da PUC-Campinas com a escola e depois de muita conversa e diálogo com todos os agentes escolares durante um ano e meio indo presencialmente à escola.

Vera – As crianças e adolescentes hoje em dia requerem muita atenção e cuidado dos adultos. Vivem em uma sociedade violenta, consumista, sem políticas específicas voltadas à juventude, principalmente. Contudo, o maior problema é que quando falamos em crianças e adolescentes no Brasil é preciso considerar que existem realidades muito diferentes. Há o grupo mais privilegiado, que são atendidos em suas necessidades e se inserem em contextos que favorecem seu desenvolvimento. Mas a desigualdade neste país afeta, principalmente, este público e não pode ser ignorada. Os problemas maiores emergem nas classes mais empobrecidas, e são observados nas escolas públicas de periferia, sobretudo no ensino noturno. A escola pública abriga 87% dos estudantes brasileiros e é preciso que se invista, urgentemente, na melhoria do ensino e educação desses jovens e crianças, sob pena de alijarmos suas possibilidades de futuro. A aprendizagem dos conhecimentos formais, promovida pela escola, tão necessária ao desenvolvimento de funções mentais complexas, que possibilitam a ampliação da consciência sobre si e sobre o mundo, é que darão aos sujeitos a possibilidade de transformar suas vidas. E a aprendizagem foi muito prejudicada na pandemia com consequências que ainda levaremos um tempo para compreender.

Daí ser fundamental juntar esforços, de diferentes profissionais, para o desenvolvimento de ações COM a escola. É isso que vimos buscando fazer.



Marcelo Andriotti
23 de maio de 2023