
Pós-doutoranda do PPG em Sustentabilidade percorre de bicicleta todo o Rio São Francisco
Ao lado de doutorando da USP, Maria Paula Pires de Oliveira ouviu relatos dos locais sobre a sua relação com o curso d’água, percepções de mudanças ambientais e iniciativas para lidar com desafios
A pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação (PPG) Stricto Sensu em Sustentabilidade da PUC-Campinas, Maria Paula Pires de Oliveira, ao lado do doutorando pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Mateus Barbosa Verdú, percorreu, entre setembro de 2024 e março de 2025, de bicicleta, todo o percurso do Rio São Francisco, desde Desemboque, distrito de Sacramento, localizado no sudoeste de Minas Gerais, próximo de onde fica a sua nascente histórica, na Serra da Canastra, até a sua foz, entre os estados de Alagoas e Sergipe, em um total de mais de 2.800 km. O objetivo de sua pesquisa é ampliar o conhecimento existente quanto à percepção socioambiental e à resiliência socioecológica nos locais visitados.

A nascente histórica do Rio São Francisco, por onde os pesquisadores passaram, está localizada no alto do Parque Nacional da Serra da Canastra, no município de São Roque de Minas (MG).
Durante a viagem ela ouviu relatos dos locais sobre a sua relação com o curso d’água, percepções de mudanças ambientais e iniciativas para lidar com desafios. Segundo ela, a proposta do projeto de pesquisa surgiu em 2023, ao conhecer o processo seletivo para a bolsa de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sustentabilidade da PUC-Campinas, coordenado pela Profa. Dra. Bruna Angela Branchi. Segundo ela, a chamada dizia que a pesquisa deveria ter “natureza interdisciplinar e abordar temáticas relacionadas com sustentabilidade, corpos hídricos, indicadores, gestão, planejamento e formulação de políticas públicas”.
“Em meu doutorado em Ciências Ambientais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), trabalhei com o tema de resiliência socioecológica e com a proposição de indicadores para compreender o papel de práticas de escolas que trabalham com educação do campo para o fortalecimento de comunidades rurais. Alguns aspectos afetam a resiliência socioecológica de um território, entre eles, o quanto as pessoas do local conhecem os diferentes elementos da paisagem e os protegem, como lidam com desafios e o nível de auto-organização para melhorar o bem-estar da comunidade e a governança do território. Além disso, atuei por mais de seis anos com Comitês de Bacias Hidrográficas, de forma que desenvolvi muita afinidade e alguma experiência com gestão das águas. A partir daí eu quis trabalhar com temas que já vinha estudando e explorar novas áreas e habilidades e pensei em um projeto de pesquisa que olhasse para estes aspectos em uma região complexa enquanto sistema socioecológico e de grande relevância social, ambiental, cultural e econômica para o país: o percurso do Rio São Francisco”, explica a pós-doutoranda.
Maria Paula diz que o que a levou a encarar a empreitada foi, além do interesse pelo tema, a vontade de conhecer a região e seus desafios – ouvindo as pessoas que ali vivem e aprendendo com suas percepções sobre as mudanças ambientais e com as iniciativas existentes para lidar com os desafios – para, depois, divulgar isso de forma simples e acessível. Desse modo, seu projeto também prevê realizar uma produção audiovisual.

A Cachoeira Casca d’Anta é a maior queda do Rio São Francisco, com 186 metros de altura, e se forma quando este deixa a Serra da Canastra, no distrito de São José do Barreiro, em São Roque de Minas (MG).
“O projeto tem como objetivo geral ampliar o conhecimento existente quanto à percepção socioambiental e à resiliência socioecológica na região. Para isso, tem como objetivos específicos: levantar percepções acerca de mudanças socioambientais, da resiliência socioecológica e de possíveis estratégias de auto-organização; identificar localmente práticas que fortalecem a resiliência socioecológica das paisagens; avaliar a replicabilidade e eventual necessidade de adequação – para Escolas Família Agrícola (EFAs) – dos indicadores de acompanhamento do papel de escolas do campo na resiliência socioecológica de comunidades rurais; e fomentar a educação e popularização da ciência, tecnologia e inovação (CT&I) na temática do projeto”, comenta a pós-doutoranda.
Colaboradora voluntária
Ela menciona que, como parte de suas atividades, “também estou como colaboradora voluntária de um projeto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), chamado ‘‘JUST’ CONSERVATION? Bridging Values for Equitable Biodiversity Governance’ (em tradução livre para o português, Conservação ‘Justa’? Unindo Valores para uma Governança Equitativa da Biodiversidade), coordenado pela Dra. Ana Paula Dutra Aguiar, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O projeto, que envolve instituições de outros países, busca compreender valores presentes em práticas de conservação da biodiversidade e na governança de territórios, assim como identificar fluxos materiais e imateriais provenientes da União Europeia em políticas ambientais locais. No Brasil, o estudo de caso fica na região do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, no Sertão do São Francisco, na Bahia, próximo ao Lago de Sobradinho, uma das inúmeras represas localizadas ao longo do rio”.
“Além disso, eu cooriento um discente do curso de Ciência de Dados e Inteligência Artificial da PUC-Campinas, Gabriel de Antonio Mazetto (bolsista PIBIC/CNPq/INPE). Seu projeto envolveu duas frentes. Uma foi criar uma plataforma para a geração automática de gráficos resultantes da aplicação dos indicadores que desenvolvi em meu doutorado. Dessa forma, as instituições de ensino poderão ter mais autonomia para aplicarem e analisarem tais indicadores. A outra frente envolveu desenvolver uma ferramenta de transcrição de áudio integrada à análise de conteúdo, gratuita e de software aberto. O trabalho está sendo orientado por mim e pela Dra. Minella Alves Martins, do INPE, e conta com a participação da Profa. Dra. Denise Helena Lombardo Ferreira, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sustentabilidade da PUC-Campinas e que é minha supervisora no pós-doutorado”, esclarece Maria Paula.

A Festa de Iemanjá, em Paulo Afonso (BA), foi um dos inúmeros eventos acompanhados pela dupla de pesquisadores durante o seu trajeto ao longo do percurso pelas margens do Rio São Francisco.
Parceria com doutorando da USP
A parceria com o doutorando da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Mateus Barbosa Verdú, por sua vez, surgiu em virtude de sua pesquisa na área de Filosofia da Educação e que também se relaciona com o Rio São Francisco, uma vez que esta, segundo o próprio Mateus, “tem o objetivo de evidenciar como o rio pode nos ensinar, pois ele funciona como um vetor de múltiplas formas de inter-relação. Assim, a pesquisa problematiza a noção de ensino como um privilégio exclusivamente humano, destacando o aprendizado como algo que emerge de acontecimentos imprevisíveis”.
Ele diz ainda que “isso se manifesta, por exemplo, no modo como as populações interagem com o rio de diferentes formas, nadando em seu leito e construindo práticas cotidianas que dependem de sua presença. Também se evidencia no vasto conhecimento sobre as plantas e árvores da região – seus usos, propriedades e funções – e na relação com os animais, cuja adaptação e comportamento demonstram uma forma própria de aprendizado e interação com o ambiente”. Dessa forma, “realizar a travessia em conjunto se mostrou muito potente, tanto para agregar nas reflexões e vivências conjuntas, que poderiam contribuir para ambas as pesquisas, quanto para questões pragmáticas, de logística e deslocamento”.
A escolha pela bicicleta
Sobre a escolha pela bicicleta como meio de transporte, Mateus explica que “não queríamos simplesmente passar de um ponto para o outro sem um efetivo contato com os locais e a bicicleta proporciona esse tipo de interação, sobretudo quando são grandes viagens. Nossa travessia, nesse sentido, foi qualitativa. Além disso, entendíamos que a receptividade das pessoas com quem se desloca dessa forma poderia ser um facilitador para a pesquisa. Fomos muito bem recebidos em todos os lugares, e a bicicleta, por si só, já quebrava o gelo, estabelecendo uma comunicação com as pessoas antes mesmo de nos apresentarmos. Ela abria muitas portas”.
Maria Paula complementa que “a bicicleta ofereceu flexibilidade e autonomia na escolha dos caminhos. Graças a ela, pudemos percorrer trajetos que não seriam possíveis de outra forma, seja pela distância, pelas condições dos terrenos ou mesmo pela necessidade de atravessar o rio de barco. Eventualmente, outras formas de deslocamento foram utilizadas, mas nosso meio de transporte principal era a bicicleta”.
Fragilidades e distúrbios observados na paisagem
Ao longo do percurso, Maria Paula comenta que Mateus e ela se depararam tanto com situações muito potentes quanto com aspectos mais frágeis.
As principais fragilidades observadas foram algumas mudanças na paisagem ao longo do rio, tais como a destruição das matas ciliares; o desmatamento; os vários afluentes do São Francisco que estão secando; diminuição da biodiversidade; e as mudanças na dinâmica e vazão do rio devido às barragens.
Maria Paula explica que a construção de diversas barragens no São Francisco levou a uma significativa diminuição de sua vazão. Por exemplo, após a barragem de Xingó, entre Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE), a vazão do rio diminui de tal modo que, na em sua foz, suas águas perderam força e, se antes ele avançava no mar, hoje o mar é quem avança sobre o rio. Isso levou, inclusive, à permanente submersão do antigo povoado de Cabeço, localizado no município de Brejo Grande (SE).

Segundo Maria Paula, após a barragem de Xingó, entre Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE), a vazão do São Francisco diminui de tal modo que as suas águas, na foz, perdem força e, se antes ele avançava no mar, hoje o mar é quem avança sobre o rio. Isso levou, inclusive, à permanente submersão do antigo povoado de Cabeço (na foto), localizado no município de Brejo Grande (SE).
Segundo a pesquisadora, inclusive, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), responsável pela administração das barragens ao longo do curso d’água, teve que pagar, após mais de vinte anos do ocorrido, uma indenização aos antigos moradores do local, hoje realocados para outro lugar da região.
“Ouvimos relatos de que, no passado, o rio adentrava alguns quilômetros no oceano. Hoje, no entanto, a água do rio perto de sua foz está salobra e as terras sofrem com o efeito das marés, que continuam avançando cada vez mais sobre os povoados. Além disso, moradores também relataram que a barra do rio era mais estreita no passado e que, atualmente, está significativamente mais larga”, explica a pós-doutoranda.
Ela diz ainda que o despejo de esgoto diretamente na água do rio e o descarte impróprio de resíduos sólidos é constante e que há regiões em que existem denúncias de inadequação em barragens de rejeitos de mineração (de forma que tais rejeitos são carreados pela chuva até o rio). Há ainda a expansão das monoculturas, o que afeta a biodiversidade local, bem como a utilização de agrotóxicos que vão para o rio. Na foz, um problema específico é a monocultura dos criadouros de camarão, que envolve questões extremamente complexas, como o descarte inadequado de resíduos e produtos químicos nos rios, agravando ainda mais a degradação ambiental. “Ao longo do trajeto nós ouvimos relatos de muitas pessoas que também percebem uma mudança nos padrões das chuvas, tanto pela quantidade, quanto pela época do ano, o que afeta, por exemplo, as práticas agrícolas. Além disso, o assoreamento e a consequente formação de ilhas também foram muito observados”, lamenta a pesquisadora.
A pós-doutoranda explica que estas questões se relacionam ainda com problemáticas sociais mais amplas, como a restrição de acesso à água (e conflitos decorrentes disso), impactos nas relações e manifestações espirituais e religiosas, diminuição de renda de pescadores, traumas até hoje presentes devido ao deslocamento forçado de comunidades por conta das barragens, entre outros. Tudo isso agravado por conflitos fundiários, em especial em comunidades tradicionais, que muitas vezes não têm seus territórios respeitados, nem por empresas, nem por governos.
Vivências gratificantes e potencialidades observadas
Maria Paula destaca a receptividade das pessoas que encontraram e que forneceram grande apoio ao longo da viagem, o que foi “fundamental para a realização do trabalho. Somos profundamente gratos a cada pessoa que nos ajudou, com estadia, alimentação, indicação e articulação”.

De acordo com a pesquisadora, o despejo de esgoto diretamente na água do rio e o descarte impróprio de resíduos sólidos é constante e há regiões em que existem denúncias de inadequação em barragens de rejeitos de mineração. Na foto, o Porto de Pilão Arcado (BA).
Ela lembra que um aspecto interessante foi conhecer diferentes relações das pessoas com o rio. “Nem todo mundo se relaciona afetivamente com ele. Muitas pessoas vivem em cidades pelas quais o São Francisco atravessa, mas pouco frequentam as suas margens. Por outro lado, algumas relações foram muito tocantes, como a de um pescador aposentado que vai todo dia olhar o rio para ver como estão as suas águas, pessoas que se articulam para a sua proteção ou crianças que brincam e aprendem a nadar em suas águas. Ouvimos muito nos relatos as pessoas dizendo como o São Francisco é a sua vida, a sua mãe, o seu pai”.
“Também foi muito enriquecedor para nós conhecermos as diferentes manifestações religiosas e culturais que se relacionam com o rio, como a Festa de Iemanjá, em Paulo Afonso (BA); a Marujada do Quilombo Mangal Barro Vermelho, em Sítio do Mato (BA); e as festas para Bom Jesus dos Navegantes, com suas procissões e corridas de barcos e canoas à vela no Baixo São Francisco (entre Alagoas e Sergipe)”, lembra a pós-doutoranda.
Algumas das iniciativas “interessantes e inspiradoras” presenciadas por ambos foram: as Escolas Família Agrícola (EFAs) de São Francisco (MG) e Sobradinho (BA); um grupo comunitário, em São Francisco (MG), de construção de barragens subterrâneas para aumentar a disponibilidade hídrica e, assim, a segurança alimentar em comunidades; o Movimento Carta de Morrinhos, em Matias Cardoso (MG), que faz o monitoramento das lagoas marginais ao Rio São Francisco localizadas na região; o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), em Juazeiro (BA), que trabalha com a convivência com o semiárido; o Instituto Florestar, em Floresta (PE), que promove a restauração ecológica da Caatinga; e a atuação de alguns segmentos da Igreja Católica, como dioceses, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP). Porém, Maria Paula menciona terem conhecido “muitas outras iniciativas individuais e coletivas que lutam pela proteção e recuperação do rio e do território. São muitas pessoas articuladas e envolvidas na luta ambiental: pescadores, quilombolas, pesquisadores, ambientalistas, agricultores, pessoas de universidades e de órgãos governamentais”.

“Também foi muito enriquecedor para nós conhecermos as diferentes manifestações religiosas e culturais que se relacionam com o rio, como a Marujada do Quilombo Mangal Barro Vermelho, em Sítio do Mato (BA), e as festas para Bom Jesus dos Navegantes, com suas procissões e corridas de barcos e canoas à vela no Baixo São Francisco, em Traipú (AL) (na foto)”, lembra a pós-doutoranda.
O que também chamou a sua atenção foi a prática do “recaatingamento”. A atividade busca recuperar a Caatinga, bioma encontrado ao longo do percurso do São Francisco. “Além da recuperação, a ideia é promover, conjuntamente, a conservação de sua biodiversidade com a participação das comunidades e a valorização da cultura local. Nela, integra-se educação ambiental, ações sociais e atividades produtivas sustentáveis que geram renda para as comunidades, como o beneficiamento de produtos feitos a partir de frutas da região”, esclarece Maria Paula. Alguns projetos visitados que trabalham com isso são os já mencionados IRPAA e Instituto Florestar.
Próximas etapas
Sobre as próximas etapas do trabalho, Maria Paula explica que a plataforma para a geração automática de gráficos resultantes da aplicação dos indicadores desenvolvida em seu doutorado e a ferramenta de transcrição de áudio integrada à análise de conteúdo, gratuita e de software aberto, está sendo finalizada. Já em relação ao INPE, a pesquisa encontra-se na fase de análise de dados e devolutiva para as comunidades.
“Sobre o trabalho de campo realizado ao longo do Rio São Francisco, está sendo feita agora a análise do material coletado durante as entrevistas. Posteriormente, será elaborada uma categorização dos temas mais destacados e um levantamento de artigos científicos para dialogar com essas percepções. Após esta análise, será feita a produção audiovisual para ser disponibilizada gratuitamente na internet”, encerra Maria Paula.
Para mais informações sobre todo o trabalho desenvolvido, basta enviar uma mensagem para Maria Paula Pires de Oliveira, através do e-mail mariapaulap.oliveira@gmail.com, e para Mateus Barbosa Verdú, através do endereço mateus.verdu@gmail.com.
Créditos das imagens
Capa: Leonardo Ferreira Murta
Demais fotos: Maria Paula Pires de Oliveira e Mateus Barbosa Verdú

