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Christiane, minha esposa, é enfermeira. Depois de ter atuado em UTI neonatal, enveredou pela área da saúde pública. Numa das primeiras consultas pediátricas do nosso filho aconteceu uma situação curiosa. Sem apresentar-se como profissional de saúde, a Chris fez uma ou duas perguntas ao médico. Ele, muito perspicaz, identificou algo próximo no vocabulário daquela mãe e começou a responder em uma linguagem bastante difícil para mim. Começaram a surgir palavras como decúbito, mecônio e impetigo, entre outras.

 

Enquanto eles conversavam, eu entendia tanto quanto o Daniel. Só que ao contrário dele, que dormia tranquilamente, começava a ficar com o coração apertado. Que tipo de doença ele teria? Até que dei um jeito de lembrá-los da minha presença e a conversa ficou mais compreensível. Aprendi que decúbito tinha a ver com a posição do sono; que mecônio referia-se às fezes e impetigo eram umas bolinhas na pele do bebê. Após quase três anos, felizmente, nada daquilo era sério e Daniel cresce bem e feliz.

 

Fiz menção a esse episódio para explicar a um vestibulando de que forma o jornalista atua como uma espécie de tradutor de uma linguagem especializada para um público que não tem formação em determinados assuntos. Assim, quando um médico escreve com linguagem médica, provavelmente apenas os médicos entenderão. O mesmo vale para advogados, engenheiros, economistas etc. Mas quando um jornalista entrevista um desses profissionais e escreve uma boa reportagem, ele presta um serviço importante à sociedade na medida em que possibilita que pessoas leigas possam ter acesso a conteúdos de especialistas.

 

Mas para desempenhar bem esse papel, é fundamental que o profissional de imprensa tenha competência técnica e teórica para mergulhar no mundo desses especialistas e, mesmo sem ser um deles, buscar o autêntico significado de palavras, conceitos e expressões próprios de cada área de conhecimento. O desafio, portanto, é entender a linguagem especializada no contexto em que ela é gerada, a fim de que o trabalho jornalístico seja fidedigno. Vale lembrar, entretanto, que nem sempre isso acontece. Questões como manipulação, falhas éticas ou mesmo incompetência muitas vezes oferecem ao leitor um produto jornalístico mal feito. 

 

É nesse contexto que vale a pena analisar as notícias a respeito dos documentos “Mitis Iudex Dominus Iesus” (Senhor Jesus, manso juiz) e “Mitis et misericors Iesus” (Jesus, manso e misericordioso), apresentados no dia 8 de setembro, nos quais o Papa Francisco apresenta as alterações que deverão ser seguidas nos processos de declaração de nulidade do sacramento do matrimônio.

 

Parte da mídia tomou o conceito de “declaração de nulidade” como sinônimo de “anulação” e, de forma precipitada, passou a divulgar que Francisco estaria abrindo brechas para facilitar a anulação dos casamentos, o que significaria, em linguagem mais popular, que o papa estaria chancelando o divórcio. A revista Veja, inclusive, apresentou a seguinte chamada: “O que Deus uniu… o papa separa. Papa Francisco simplifica e agiliza processo de anulação do casamento católico”.

 

Mas o espírito das mudanças é bem diferente disso. Como esclarece o Mons. Adriano Brolese, Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, a mídia se equivoca ao utilizar o termo “anulação”, pois essa não é a conotação correta. “O que existe são processos de declaração de nulidade, nos quais o poder judiciário da Igreja se encarrega de julgar se determinado matrimônio foi realmente válido ou não”, afirma. “Autoridade para anular um casamento válido nem o papa tem”, completa. Ou seja, não se trata de anular um casamento válido, mas de verificar se o casamento foi contraído de forma válida. Se não foi, declara-se a nulidade. E o que muda, na prática, é que os processos passarão a ser mais rápidos e mais acessíveis financeiramente. Quanto à questão da doutrina da indissolubilidade do matrimônio, nenhuma alteração.

 

Discutir os elementos que poderiam indicar a (in)validade de um matrimônio católico extrapola as limitações desse texto. O que é válido apontar, a partir desse episódio, é que o fenômeno religioso, quando tomado como pauta da produção jornalística, deve ser tratado com os mesmos critérios do jornalismo especializado, de tal forma que o jornalista atue como mediador, com um zelo para garantir que o leitor tenha acesso às informações em fidelidade ao contexto em que elas foram geradas. Tais preocupações devem nortear a constante busca do bom jornalismo.

 

Lindolfo Alexandre de Souza é diretor da Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas, onde estudou Jornalismo e Ciências Religiosas. É mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.



Portal Puc-Campinas
15 de setembro de 2015